Sunday, August 27, 2006

Nicolau e a máquina

"A própria máquina quanto mais se aperfeiçoa mais se apaga e desaparece atrás de sua função. Parece que todo o esforço industrial do homem, todos os cálculos, todas as noites de vigílias sobre as plantas, conduzem apenas à simplicidade, como se fosse necessária a experiência de várias gerações para libertar a curva de uma coluna, de uma quilha ou de uma fuselagem de avião até dar-lhe a pureza elementar da curva de um seio ou de um ombro".

(Terra dos Homens – Saint Exupéry)


Ontem, bêbado, chutei uma máquina de café. Ela engoliu meu dinheiro, e não cuspiu café. O guarda do metrô disse para não fazê-lo invertendo a lógica ludista, ou, nas palavras de minha mãe, criando o ludismo budista.

Outro dia, na casa dela, vi “2001, uma Odisséia no Espaço”. Achei por lá Terra dos Homens, de Saint Exupéry.

Encontrei Nicolau em Bariloche. Ele vindo de El Chaltén, e eu do Valle Encantado. Ele tinha a barba crescida, e o olhar assustadiço. Falava pouco. Eu falava muito, estava chegando, queria saber. Eles tinham passado por diversos problemas na escalada, que o Neto resumiu com uma “Película de terror”. Somado isso à pedra que quebrou o tornozelo de Nicolau, adiantando a volta ao Brasil, tem-se o susto e o olhar perdido.

Quando ouvi falar que uma das agulhas de El Chalten se chamava Saint Exupéry, fiquei com isso na cabeça. Quando criança estudara num colégio chamado Pequeno Príncipe. Também me marcaram os nomes de outras duas agulhas: Mermoz e Guillaumet. Mas curiosamente, mesmo querendo, nunca tentei descobrir o que significavam, ou como se escreviam.

Logo no começo de Terra dos Homens achei o nome Guillaumet. Não muito distante, achei Mermoz. Guillaumet e Mermoz, como Exupéry, foram pioneiros da aviação civil. Durante alguns anos fizeram o correio aéreo no sul da América Latina. Não preciso do Google.

Thursday, August 24, 2006

Interpelações:

-Ta vendo ali ?
Tava indo visitar o irmão em Goiás. Pra avião, só tinha dinheiro para a volta. O que mais entediava era Minas Gerais, estado onde se passa mais da metade da viagem. É tanta cidade e cidadezinha, que já em Juiz de Fora, Rafael desistiu de olhar pela janela, e resolveu tentar dormir. A situação ajudava. O ônibus deslizava tranqüilo pelo trecho privatizado da Br 040.
Enquanto tentava dormir, o cidadão ao lado olhou curioso pela janela, depois pra frente, depois pra janela de novo, e depois pra cara do Rafael, depois pra janela e pra cara do Rafael, e depois pra frente, e viu um pátio cheio de carros e um enorme galpão. O Rafael estava quase dormindo, e o pátio se aproximava. Quando o ônibus ficou paralelo ao pátio, o curioso não resistiu: olhou pela janela, pra frente, e pra cara do Rafael, que já dormia. Pela janela de novo, e cutucou:
-Ta vendo ali? Fábrica da Mercedez. Emprega mais de 5 mil pessoas!
O Rafael, que é um sujeito educado, olhou pra cara do curioso, pra janela, pra frente, e pra janela, e pra cara do curioso de novo, e lembrou de fazer um leve aceno de concordância antes de voltar a dormir.
-Bambambam
Dessa vez fui eu, num coletivo. Um senhor sentou do meu lado, e me julgando um sujeito instruído, resolveu dirimir uma dúvida: ouvira que um tal de “bambambam” iria soltar os passarinhos das pessoas. Ele, que possuía alguns, estava seriamente preocupado. Eu, como um bom sujeito instruído, não ia perder tempo em explicar que o bambambam se chamava Instituto Brasileiro de Meio Ambiente. IBAMA. Muito menos fazer um discurso sobre o absurdo que é engaiolar animais. Tratei de conversar sobre passarinho.
-Pintor.

Esse eu não posso identificar, mas se algum dia ler esses relatos, vai lembrar de que demos boas gargalhadas com essa história. Gargalhadas que não garanto agora, porque a graça maior estava certamente na cara de constrangimento do narrador personagem.

Vinha ele de um estado longínquo em direção à Guanabara, via Br 101. No meio do caminho, alguma coisa que comera começou a fazer efeito em seu intestino. Como é praxe nessas ocasiões, o tempo não colaborou. Não deu pra esperar a próxima parada.Correu pro banheiro, mas também ali as coisas se precipitaram.

Humildemente, nosso cidadão se dirigiu ao motorista e solicitou uma parada, no que foi prontamente atendido. Conhecendo a boa vontade da maioria dos motoristas, e a rigidez das regras das paradas em estradas, creio que não foi altruísmo o que motivou o distinto profissional a tal atitude. Suspeito que a “coisa” já chegara à cabine de comando.

Pois bem, o rapaz desceu, e se resolveu como pode. Ao voltar para o seu lugar, ouviu um comentário de duas senhoras que estavam próximas:
-O motorista disse que o rapaz aí do lado é pintor.
-Por quê ?
-Fez obra até nas paredes.

Meu amigo melhorou substancialmente depois da parada, mas por causa de tal diálogo, continuou encolhido na poltrona até a rodoviária Novo Rio.

Monday, August 07, 2006

Kiwi, Kiwi

Só agora, depois perceber o quanto o queijo gorgonzola é salgado, me arrependo de ter pedido um crepe. Ele estava a menos da metade, quando chegou o suco de Kiwi. Só agora, lembrei de Augusto. Talvez tenha passado os últimos vinte anos sem lembrar da existência dele. Foi quando eu tinha mais ou menos dez anos. Falávamos sobre frutas no recreio. Eu disse que gostava de Kiwi. Passou uma ou duas semanas, o Augusto me veio com a pergunta. No domingo, a família havia comprado Kiwi, mas não soube comê-los. Como lembrara que eu gostava da fruta, queria saber se Kiwi era comido com ou sem casca. Não soube respondê-lo. Numa tinha comido Kiwi. A resposta, na conversa de recreio, tinha sido uma das mentiras despretensiosas da infância.

Só agora, tomando em grandes goles o suco de Kiwi, acho um pouco mais pretensiosa a pergunta do garoto. Não que tenha partido dele. Era bem tranqüilo. Mas talvez o pai, querendo me provar, apurar aquela história. Como o filho da faxineira do Dom Silvério poderia comer Kiwi? Eram essas as pequenas coisas que separavam nós, filhos de empregados, deles, que pagavam a mensalidade. As grandes coisas, às vezes, eram transponíveis. Eu estudava no melhor colégio da cidade. Mas era filho da faxineira, e nunca tinha comido Kiwi.

Só agora gostaria de encontrar Augusto. Talvez uma buzinada. Quem sabe, chamá-lo para um almoço. Servir, de sobremesa, uma grande quantidade de Kiwi, e devorá-los com casca. Mas ele não deve se lembrar do que aconteceu. Minha mãe sempre dizia que eu era como os grandes arquivos do colégio, onde os padres guardavam fichas de várias gerações de alunos. Mas até os arquivos, apesar da mania de precaução dos padres, eram esvaziados de vez em quando daquilo que não lhes era mais essencial.
Só agora, com a família viajando, eu comia sozinho e pensava. O crepe chegou ao fim. Só agora, sorvo o resto do suco que se acumula junto da espuma, no fundo do copo, sem temer as reações que o barulho pode provocar. Sinto alguns caroços. Percebo que os Kiwis são parentes dos morangos. Apesar de que esses, se come com casca. Peço a conta, e volto pra casa.

Friday, August 04, 2006

Parada dos Burros

Capítulo 6

Cisco sofreu castigo severo, e voltou para a lida com o irmão. Mas os trabalhos foram interrompidos, pois o inverno já se aproximava. Com as águas, floresceu a lavoura, e desmontou-se a casa. A decisão foi unânime. Cisco foi expulso de Parada dos Burros. Ainda ficou na retina do irmão mais novo, junto com o amargo do arrependimento na garganta, a imagem do irmão mais velho indo embora carregando o quanto podia de livros enlameados sobre os braços.

Thursday, August 03, 2006

Parada dos Burros

Capítulo 5
Cisco aprendeu a ler. Não entendia muito bem alguns dos livros que lia, e teve dificuldade em assimilar a idéia de que alguns eram impossíveis de serem compreendidos. As palavras formadas não faziam o menor sentido, raras vezes entendia as pequenas. Eram cheios de virgulinhas de cabeça para baixo separando as letras. Só podiam ter escrito errado aqueles livros.
Mas ele persistiu na leitura, e ao fim de alguns meses, já tinha esgotado todos os livros que havia retirado da casa. Foi quando teve a idéia de arrancar um livro do meio de uma parede. Como esse era pequeno e fácil, leu em dois dias. Arrancou outro, e mais outro e tantos outros conforme o tempo passava.
Não sabia que era observado pelo irmão mais novo. Saía com o nascente, mas não ia ao campo. Sem a menor desculpa, abandonava o caçula na lida, e ia para o pequeno vale, onde tinha sua biblioteca dentro de uma caverna.
Durante muito tempo o irmão mais novo agüentou calado. Temia o irmão mais velho.Mas quando não pode mais suportar, a seca aumentando o trabalho, a fome e o castigo, denunciou Cisco para os pais. Incrédulos, ambos queriam pegar o menino em flagrante. Não foi necessário muito esforço para tanto. No dia seguinte, Cisco estava a arrancar livros da parede já rala da casa.

Wednesday, August 02, 2006

Parada dos Burros

Capítulo 4
A leitura só chegou muitos anos depois em Parada dos Burros. Cisco foi o primeiro morador da vila a tomar coragem de ir a Serro não para comprar provisões, mas para freqüentar a escola. Em um ano, aprendeu a ler e a escrever o próprio nome, e voltou para casa trazendo consigo um caderno com algumas frases, escritas pela professora.
Todas as tardes, Cisco ia à casa de livros, que ficava ao fundo de uma pequena chácara. No começo, se contentava em ler as lombadas dos volumes, sempre tentando decifras as palavras a partir das frases que tinha escrita no seu caderno. Encontrava semelhança apenas nas “palavras pequenas”, como chamava preposições, artigos e pronomes. Aos poucos, começou a fazer associações fonéticas e identificar alguns substantivos e verbos. Ficou nessa prática por mais de um ano.
No fim da estação das águas, era praxe entre os moradores de Parada dos Burros virem num fim de semana até a casa dos livros para refazer o telhado de folhas. Ao fim do dia, dançavam na casa, para assentar o chão de barro, quase sempre revolvido pelas chuvas. Era o único dia em que se ocupavam da casa durante o ano.
Mas naquele inverno, Cisco se adiantou e foi lá na véspera do dia da reforma. O plano já havia sido maquinado por ele há tempo. Como o telhado estava completamente destruído, com o auxílio de uma escada ele retirou todos os livros mais altos das colunas que formavam as quatro paredes, e escondeu numa caverna próxima. A diferença de poucos centímetros na altura da casa não foi notada pelos homens que fizeram a reforma do telhado.

Tuesday, August 01, 2006

Dias que não deveriam existir


Acordou sem rumo, perdeu o prumo. Na mão esquerda o resumo da tese sobre “Como se faz uma tese”, de Umberto Eco. Achou dentro de um livro emprestado um cartão de dentista. Não um cartão de visitas, mas um desses onde se marcam datas e horas de consultas. Visconde de Pirajá. Tentou ver se o endereço era perto de onde morava. Desistiu. Marcou a lápis consultas para todos os dias da semana. No ônibus, gritou com o motorista porque não parou no ponto. Ao lado, dentro do ônibus, estava sua analista. Alguns dias, não deveriam existir.

Parada dos Burros

Capítulo 3

Quando o mascate turco chegou ao vilarejo, já em fins do século XIX, os livros já eram tratados como objetos sagrados pelos habitantes de Parada dos Burros. Foi necessária uma reunião com as pessoas mais velhas do local para que pudesse ser autorizado ao mascate se abrigar da chuva no estábulo dos livros.

Como se estava na estação das águas, não parou de chover durante um mês. No começo, uma delegação de habitantes se deslocava até o estábulo para saber notícia dos livros, mas na primeira semana, o mascate não olhou para eles. Ocupava-se em fazer contas e se lamentar do infortúnio de ficar sem trabalhar por causa da chuva.

Os livros, empilhados lado a lado, formavam um bloco compacto com a metade do volume do estábulo. Foi provavelmente num delírio noturno, olhando para aquela massa de papéis, que o turco teve a idéia. Gastou dias a passar goma arábica, que não conseguira vender, em cada um dos volumes. No fim de duas semanas, como num milagre, fez-se o sol.

O mascate saiu então com todos os livros para o descampado atrás do estábulo, e começou a empilhá-los, sempre colocando mais goma, agora entre eles. Em dois dias, havia erguido quatro paredes, por sobre as quais jogou folhas de sapê, abundantes na região.