Monday, July 31, 2006

Parada dos Burros

Capítulo 2

Dizia a lenda que no século XVIII, quando Parada dos Burros era um mero entreposto da Estrada Real, um dos inconfidentes se refugiara em Diamantina. Afeito aos livros, assim que se estabeleceu na cidade, encomendou a uma tropa que trouxesse do Rio, vinda de Portugal, uma grande biblioteca.

Chovia muito quando o tropel se aproximou de Parada dos Burros, uma pequena fonte onde era possível dar de beber aos animais. Depois da fonte, havia um grande declive, que se tornava intransponível em dias de chuva. O calçamento, feito de pedras de calcário, se misturava com a lama e com a água, impossibilitando a passagem das tropas.

Como não parasse de chover, os tropeiros foram obrigados a acampar numa clareira próxima. Ao cabo de dois dias, chegou um mensageiro de Diamantina com a notícia de que o homem que encomendara os livros fora chamado a depor na corte, e que suspendera até segunda ordem a encomenda. Mais dois dias de chuva tinham caído sobre a tropa e os livros quando outro o mensageiro veio com a segunda e última ordem: os tropeiros deveriam esconder a encomenda na mata próxima, e regressar ao Rio de Janeiro.

Não se tem nenhum pormenor. Sabe-se que anos mais tarde, quando a Estrada Real já estava desviada de Parada dos Burros, os livros foram achados. Como ninguém sabia ler no pequeno vilarejo que havia sido erguido no local, eles foram empilhados num estábulo à espera de que algum dia alguém pudesse lhes dar melhor destino. Gerações passaram por Parada dos Burros sem que os livros fossem sequer movidos de lugar.

Sunday, July 30, 2006

Parada dos Burros

Capítulo I.
Achava cisco a mais bonita das palavras. Quando criança, superava a dor da intrusão de alguma partícula nos olhos só de ouvir a avó dizer: "deve ser algum cisco, deixa eu assoprar". Assoprar, e seu parente culto, soprar, também eram lindos verbos. Mas cisco era a palavra mais bonita que existia.Chamava-se Francisco, e é o que explica. Não gostava, porém, do verbo ciscar. Imaginava sempre um pintinho amarelo encardido ciscando num chão de areia, também encardida e fosca por molhada da chuva.Não gostava de Chico. Não tendo outra opção, já que ninguém enveredou por chamar-lhe cisco, foi até o fim da adolescência Francisco. Mas sempre se acreditou Cisco.

Monday, July 17, 2006

Peixe

Consta que os três pegaram o ônibus na Nossa Senhora, na altura do Posto 6. Casal e filho saídos da praia. O pai pagou as passagens com uma nota de dez reais, e amassou o troco, enfiando moedas e cédulas no bolso da bermuda. Enfileirados, foram os três se posicionar na parte de trás do ônibus, à esperara de um lugar vago. O amarelinho estava cheio.

O menino segurou com uma mão a barra da saia da mãe, e com a outra, a barra de ferro por sobre o banco onde se sentava uma menina lourinha. Tímida nos seus dezoito anos, ela não ousou reclamar quando, numa freada, o menino puxou sem querer alguns fios de seu cabelo. Agüentou quieta a dor, virou para trás, e sorriu, como se seu sorriso pudesse sublimar não o instinto do menino, que bem poderia repetir o gesto uma curva adiante, mas a própria dor, tão dissonante numa tarde na qual acabara de deixar para trás, na praia, amigos, para encontrar adiante, no cinema, o namorado.

Uma fileira de bancos à frente, só que na coluna da esquerda, um homem dos seus quarenta anos, vestindo camiseta regata, sunga, e chinelo, segurava no colo, embrulhado em jornal, um peixe.Com pouco menos de um metro, o almoço descansava tranqüilamente, só com a cabeça de fora do invólucro de notícias que separava suas escamas salgadas da pele também salgada do homem.

Impávidos, homem e peixe ignoravam o olhar irrequieto do menino, que buscava desesperadamente um lugar para se sentar. Depois de percorrer todos os bancos da direita, varreu toda a coluna da esquerda, desde o trocador, parando de repente.

“Mãe, o neném do moço tem uma cara de peixe!”.

Dentro do diâmetro que uma voz de três anos foi capaz de alcançar, todos riram. Principalmente a menina lourinha, que esqueceu do puxão no cabelo e se lembrou do poema de Fernando Pessoa que o namorado lhe recitara há alguns dias, que falava sobre uma criança comendo chocolates. “Não há mais metafísica do que chocolates”. Era algo assim que dizia o poema. Não sabia ao certo o que queria dizer metafísica, mas compreendeu na hora, quando da recitação do poema, e agora, com o menino e o peixe. A menina encontrou o namorado na fila do cinema. O casal e o menino saltaram. E o dono da peixaria sorriu.

Monday, July 03, 2006

Em tempo

Cagiba,

Ontem a insônia me fez ouvir os micos à laser.

De novo

O texto de baixo o amigo me mandou no domingo, e a idéia de publicar foi minha. Tinha um problema, porém: logo no começo, a repetição da palavra quente. Hoje, o amigo me ligou. O texto não havia sido publicado, mas não por causa do problema. O amigo também não me ligou pra reclamar a publicação. Ligou sem motivo, o maior motivo que se tem pra ligar. De qualquer forma, relatei minha ressalva. O amigo, sem relutar, permitiu que eu fizesse qualquer mudança. Mas agora, encarando a tela branca, me acovardei.

Estava há pouco ouvindo um disco de vinil, e tive medo que fazer com o texto o que CD fez com as músicas que antes ouvíamos em vinil. É preciso diferenciar erro de nuance, e eu não sou capaz de fazê-lo. Bem sei, entretanto, que se não se pode diferenciá-los, deve se esquecer a questão e passar adiante. É sempre mais correto errar. Sou apaixonado por uma menina, um emaranhado de erros e nuances. Linda.

És, minha cara,

Entre um chiado e um pulo,

Vinil.

És minha cara e tara e apenas

És de parar o trânsito do meu pensamento

para ver teu trânsito

És repetição de palavra

palavra, palavra, palavra, palavra,

Sem manual não sei combiná-las

És rara, linda.

Palavra, palavra, palavra, palavra,
Daqui a pouco sai teu nome

Por Rafael Nogueira, para mim Cagibrino

De vez em quando, a gente tem dias ruins.

A cidade no inverno mostra o real significado das tais condições normais de temperatura e pressão, das aulas de química. Nada pode estar mais fabulosamente ameno; o sol não castiga a pele; a boca não seca como nos dias quentes. A cidade também não pode estar mais bonita, pois tira o manto úmido dos dias quentes. Talvez seja assim que acontece na ordem da natureza. No nosso verão, no hemisfério sul, as tardes passam como digestão de comida pesada. A parte de cima do mundo sofre com congelantes dias de pouca luz. No nosso inverno, há o equilíbrio: os ponteiros dos termômetros se acertam. Acho que os vinte e sete graus que tínhamos na manhã de ontem eram iguais aos de Genebra, talvez. Mesma aprazível sensação, tanto cá, quanto lá.Nesse formidável momento de equilíbrio, as pessoas deveriam ficar mais pacíficas. Não digo que deveriam se amar mais. Só respeitar o instante em que o sol bate no rosto e alucina mesmo através das pálpebras

Havia bandeiras pela cidade, tremulando. Algumas já rotas e embaraçadas. O sol também alucinava as superfícies dessas bandeiras.

Mesmo em agradáveis manhãs, às vezes o dia acaba sendo ruim. Um bom banho, chinelo e sofá, mas algo vai fazer o seu dia ruim; é possível até sentir. A gente segue com os planos, faz as coisas que ia fazer. Nesses dias, a gente vai enfurecer seu bom amigo, que não entende o desespero de quem está prestes a ter um dia ruim. Na verdade, ninguém vai entender seu pavor, e tudo caminha sem mudanças: seu dia já está sendo ruim. Tenta reparar mas todo esforço é inútil.

No fim, você não consegue da menina mais que um beijo; da consciência, uma lição de moral. Ninguém se importa se você não teve um dia muito feliz, nem mesmo a gente. Mas, de madrugada, a cidade vazia é bonita. Ela oferece à gente o silêncio. Perto de casa, pássaros fazem uma verdadeira sinfonia, com cantos que parecem barulhos de lasers, iguais aos que ouvimos nos filmes. Atentos, pode-se receber plenamente aquele som nos ouvidos. Talvez não fossem pássaros, fossem micos. Não sei. Não acho que haja micos nas árvores da minha rua. Ainda mais àquela hora da madrugada.

De qualquer modo, nem um dia ruim nem as bandeirolas e ruas enfeitadas têm alguma importância para aqueles pássaros, que provavelmente nunca se deram conta que as bandeiras alguma vez estiveram ali.

Mesmo assim, de manhã, há que se dizer, dá uma baita vontade de acordar sabendo que mais tarde tem jogo do Brasil.