“Se ela soubesse como meu dia melhora quando ela vem pro trabalho de óculos”. Não é que Fernando pense em alguma frase parecida com essa toda vez que Mariana deixa as lentes gelatinosas em casa pra descansar os olhos por trás de duas de resina, uma com 1,25 e outra com 2,75 graus, emolduradas por uma armação de acrílico azul claro. Ele simplesmente se sente feliz ao vê-la, e só depois compõe alguma sentença. Nos dias dos óculos, é uma frase sobre os óculos, quando não, é algo sobre alguma roupa, ou o cabelo preso ou solto. O fato é que ele sente sempre uma imensa alegria ao vê-la, e em seguida imagina uma frase. São sentenças bobas, ingênuas, como qualquer coisa que ele já tenha pensado em escrever ou escrito. Mas são a porta de entrada de centenas de contos que ele nunca vai escrever. Os contos são o oposto das frases. As frases expandem sensações vividas em milésimos de segundos, existem. Os contos existem por milésimos de segundos, e no fundo são a sensação de ver Mariana lendo um conto dele que comece com a frase.
O problema é que a criatividade sempre lhe falta na hora de compor frases para serem ditas. De qualquer forma, na semana que o editor viajou para uma feira literária, uma viagem à editoria de economia, na antevéspera do fechamento, não era recomendável. Poderia até puxar assunto falando sobre as páginas que ainda estavam em branco, mas uma repórter de economia não levaria muito a sério a dificuldade de fechamento do caderno de literatura. Só eles trabalham. Fernando continuava olhando para o editor de texto e por cima do monitor do computador alternadamente. Quarenta minutos depois, a salvação chegou.
Mais uma vez, o malote milagroso. Um livro novo que lançavam, mesmo que não fosse bom, saciava a sede do leitor da pagina cinco do caderno, se é que esse leitor existia. Dessa vez, depois de um kit com caneta e uma agenda da Caixa Econômica, pouco útil quando já se está no mês de maio, vinha um envelope timbrado da Companhia das Letras com “Mãos de cavalo”, de Daniel Galera. Antes de ler a orelha, Fernando olhou para o relógio e para a última página do livro. Cento e oitenta e oito paginas, seis horas. Quatro pra ler, duas pra resenhar. A rapidez do cálculo surpreenderia até Mariana, que naquele momento devia estar tentando entender algum dos índices de preços ao consumidor.
Foram realmente quatro horas ininterruptas de leitura. Enquanto lia, Fernando nunca anotava nada. Compensava toda dislexia e falta de organização com a capacidade que tinha de abrir blocos de notas dentro do cérebro. Fazia associações, anotava idéias e frases, e estruturava a resenha sem usar a caneta ou o computador, e não perdia a capacidade de fruir a leitura. Quando terminava de ler, já trazia ao menos uma conclusão: gostara do livro. Ele jamais leu um livro do qual não tenha gostado. Julga simplesmente impossível. Lê às vezes mais de dois terços de alguns, mas nunca termina. Ele sabe que isso é incoerente com sua profissão, mas não sabe agir de outro jeito. Por outro lado, acaba lendo bem mais do que se lesse os livros inteiros. Tem semanas em que lê dezenas de livros pela metade, até achar um que o leve até o fim. Se somasse as páginas dos inacabados, sem dúvida elas se sobressairiam às dos livros concluiu durante a vida toda.
Agora estava “Mãos de cavalo”, esperando para ser resenhando. Tarefa ingrata, e até certo ponto, odiada por Fernando. Detesta teorizar sobre livros. Gosta de dividir com os outros sensações que uma passagem traz, e principalmente, gosta de recomendar leituras. Está sempre querendo que os amigos leiam os livros que lê. “Mãos de cavalo”, leitura recomendada. Da resenha feita as onze horas daquela quinta-feira quase nada foi publicado no sábado. O editor voltou mais cedo, pegou meia dúzia de críticas de jornalistas conhecidos, leu o release da editora, a orelha do livro, e lá estavam duas colunas sobre o escritor que amadureceu, e que saído da internet, é agora uma das promessas da literatura nacional.O leitor da página cinco, provavelmente não vai ler o livro, mas algum amigo de Fernando deve fazê-lo.
As idéias da resenha, ignoradas por Lício, o editor do caderno, Fernando não guardou em lugar algum. Antes de dormir, lembrou apenas que tinha feito alguma associação com o Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo. Nada de novo, mas nada que pegasse o atalho da obviedade. Não tocou na coincidência dos dois escritores serem gaúchos, por exemplo. Da leitura da cena do parto em Mãos de Cavalo nasceu a idéia de imaginar um possível parto para o livro. O Tempo e o Vento, que era pai de tanta gente, e tinha até um bastardo na Colômbia, não ia se negar a reconhecer mais essa paternidade. “Mãos de Cavalo” nascia então no momento em que Toríbio Cambará morria no colo de Floriano, dentro de um táxi, depois de ser esfaqueado em uma briga.
Essas associações livres são o esporte preferido de Fernando, e são, principalmente, seu remédio para dormir. Ele às chama de associação livres justamente porque não tem a menor pretensão de descobrir o elo perdido que liga os escritores.Sabe muito bem que quem conecta um livro ao outro é ele mesmo, e se sente feliz ao conectar um clássico lido aos quatorze anos com um livro lido há poucos dias. No meio das associações sempre surgem frases que ele julga ótimas para as resenhas a serem escritas no dia seguinte, mas quando lembra de escrevê-las, Lício lembra de arrancá-las, quase sempre com argumentos simplistas e antipoéticos: "quem pari é a mãe, e não o pai", disse ao ler o trecho sobre o parto de "Mãos de Cavalo". A vida segue e Fernando continua como um pastor de igreja, pregando o evangelho de sua estante. Naquela noite dormiu com um sorriso ao lembrar de Claudia. Tinha dito à ela que a mania de recomendar livros vinha do fato de querer que os outros gostem daquilo que ele gosta, e que o faz feliz. Ela respondeu que a leitura não era necessária. Bastava gostar dele para gostar de todos aqueles livros.