Friday, June 30, 2006

Violão Estrambaboio.


O Espantalho não é mais aquele, olha a cara dele, o Espantalho não é mais aquele, olha cara dele! Isso porque andei pensando: ando trabalhando muito com palavras. Aqui, textos que não sei de onde vem, nem para onde vão. Acolá, textos pra TV, textos pra faculdade. Tenho a certeza, com tudo isso, que ainda vou salpicar o mundo de palavras. Não acho improvável que um dia escreva um livro. Se vai ser bom, é outro papo. Mas duvido que faça uma coisa que fiz quando tinha uns quatro ou cinco anos, no máximo: inventei uma palavra. Posso até criar neologismos. Um radical daqui, um sufixo de lá, agora tirar uma palavra nova da cartola, acho difícil. Mas quando se é criança, a gente não está, a gente é, e em algum lugar eu achei “estrambaboio”.

Com uma colher grande à guisa de guitarra, apoiada sobre a barriga, eu cantava pela cozinha: “Violão estrambaboio, violão estrambaboio”.A pose, provavelmente, vinha da tentativa de imitar o Hebert Vianna que via na televisão. Já o estrambaboio, eu nunca soube, e ninguém jamais descobriu o que queria dizer. O fato é que o violão estrambaboio estava ali, na minha barriga, e eu, num arroubo de metalinguagem, cantava acompanhado dele: “Violão estrambaboio, violão estrambaboio”. De lá pra cá, as coisas só pioraram: aprendi a ler e escrever, estudei, e entrei pra faculdade. Fiz algumas coisas legais, mas nada que merecesse a importância do violão estrambaboio. Acho até que deveria usá-lo mais, principalmente nos momentos de tristeza, afinal, ele é algo que só eu tenho, ninguém mais. Por outro lado, tenho que evitar a tentação de buscar um significado para estrambaboio. Isso implicaria o uso de outras palavras para defini-lo, e palavras que andam por aí, nos dicionários, nos livros e nas placas.

Tuesday, June 27, 2006

É Tribuna ou bisnaga ?


A rotina matinal de Otavio é rígida. De segunda à sexta, acorda às seis e quinze da manhã, toma água banho e café, e segue para a escola. Aos sábados, acorda às sete, toma água, banho e café e vai para escolinha de futebol do batalhão. Nesse dia, quase sempre faz para si um protesto: “pra que tomar banho pra jogar bola”, mas na prática é água, banho e café. No domingo, acorda às oito e meia, toma água, e pega cinco reais com o pai, que lhe pede para comprar a Tribuna, ou uma bisnaga. Seu Geraldo nunca pede as duas coisas. Quando come bisnaga, não lê a Tribuna, se lê o jornal, não come o pão, embora nunca tenha se decidido conscientemente por esse agir.

O problema é que tanto a Tribuna, que é o nome corriqueiro dado ao jornal Tribuna de Minas, quanto a bisnaga, são vendidas no mesmo lugar: bem na esquina da Padre Café com a Cândido Tostes, está a lojinha do Elomir. De nome “Tem de Tudo LTDA”, é para os habitantes do bairro de São Matheus a lojinha. As primeiras três vezes em que Otávio errou, foi por puro azar. Trabalhava sempre com a possibilidade de 50 por cento, e mesmo assim, levou seguidamente tribuna quando o pai lhe pedira para comprar bisnaga, bisnaga quando o pai lhe pedira tribuna, e mais uma vez tribuna no lugar de bisnaga.
Desde então, passou a ficar reticente ao balcão. Chegou a mudar de idéia várias vezes, conjeturado sobre o pedido que lhe haviam feito há não mais de dez minutos. “Quero uma tribuna, quer dizer, uma bisnaga, quer dizer, tribuna bisnaga tribuna”. Com o tempo, o gordo Elomir se sensibilizou, e elaborou junto com Seu Geraldo algumas estratégias preventivas: quase sempre o menino já sai de casa com um papel anotado com uma das duas opções. Quando Seu Geraldo esquece da nota, Elomir não se importa em telefonar para a casa do garoto. Dia desses, com o humor corriqueiro que uma manhã ensolarada de domingo despeja sobre os moradores de cidades pequenas e médias, falou sorridente para Otávio: é Tribuna ou bisnaga? O menino deu a resposta que o pai lhe fizera decorar, para brincar com o vendedor: Não sei Elomir, só sei que é pra levar debaixo do braço.

Monday, June 26, 2006

Teorias

Tenho várias teorias malucas, entre elas uma de que na casa das pessoas existem coisas únicas, não encontrada em outros lares. Não se trata de sentimentos, relações, pessoas, ou ambientes. Trata-se de objetos, quase sempre pequenos. Na minha vó, por exemplo, tinha um artefato de plástico, em formato de "tê", amarelo, da cor dos barbeadores descartáveis da Gillete, que auxiliava a gente a apertar a pasta de dente conforme fossemos usando. Você encaixava uma fenda que havia na parte maior do “tê” no final do tubo, e girava a outra parte. Então, como num milagre, tínhamos creme dental.

Tem também uns suportes para colocar panelas quentes em cima da mesa que ainda existem. Eles são feitos de barras finas de metal entrelaçadas. Em aberto, é lozangular, mas se dobram e ficam compridos. A melhor parte é que eles abrem e fecham como uma sanfona, e se você estica na vertical, tem que comprimi-los na horizontal para que se fechem, e para reiniciar a operação, tem que se fazer o contrário. É difícil de explicar, mas esse simulacro da teoria da relatividade dimensional vem servindo de brinquedo há duas gerações.

Já na casa de um amigo, que freqüentei muito na adolescência, tinha um suporte de facas. Era como um cavalete de metal. Uma barra fina de dez centímetros de comprimento, mais os ou menos, e nas extremidades, pequenas barras formando um "Xis”. Facas sujas de manteiga não precisavam pousar sobre a toalha da mesa, ou na borda de pires.

Se tivesse paciência e capacidade descritiva para tanto, poderia enumerar outros objetos, mas paro por aqui. É possível até que eles existam em outras casas, mas duvido um pouco que possam existir dois lares dentro de um mesmo arquipélago social no qual eles se repitam. Explicando melhor, não é permitido, pela lógica que organiza o cosmos, que eu conheça alguém que tenha em casa um apertador de pasta de dentes, nem dois amigos que tenham um apoiador de facas.

Pescaria

Ficou moído Sancho, espantado Dom Quixote, desancado o ruço, e Rocinate não muito cristalino;

Tuesday, June 20, 2006

Um certo Mãos de Cavalo.


“Se ela soubesse como meu dia melhora quando ela vem pro trabalho de óculos”. Não é que Fernando pense em alguma frase parecida com essa toda vez que Mariana deixa as lentes gelatinosas em casa pra descansar os olhos por trás de duas de resina, uma com 1,25 e outra com 2,75 graus, emolduradas por uma armação de acrílico azul claro. Ele simplesmente se sente feliz ao vê-la, e só depois compõe alguma sentença. Nos dias dos óculos, é uma frase sobre os óculos, quando não, é algo sobre alguma roupa, ou o cabelo preso ou solto. O fato é que ele sente sempre uma imensa alegria ao vê-la, e em seguida imagina uma frase. São sentenças bobas, ingênuas, como qualquer coisa que ele já tenha pensado em escrever ou escrito. Mas são a porta de entrada de centenas de contos que ele nunca vai escrever. Os contos são o oposto das frases. As frases expandem sensações vividas em milésimos de segundos, existem. Os contos existem por milésimos de segundos, e no fundo são a sensação de ver Mariana lendo um conto dele que comece com a frase.
O problema é que a criatividade sempre lhe falta na hora de compor frases para serem ditas. De qualquer forma, na semana que o editor viajou para uma feira literária, uma viagem à editoria de economia, na antevéspera do fechamento, não era recomendável. Poderia até puxar assunto falando sobre as páginas que ainda estavam em branco, mas uma repórter de economia não levaria muito a sério a dificuldade de fechamento do caderno de literatura. Só eles trabalham. Fernando continuava olhando para o editor de texto e por cima do monitor do computador alternadamente. Quarenta minutos depois, a salvação chegou.
Mais uma vez, o malote milagroso. Um livro novo que lançavam, mesmo que não fosse bom, saciava a sede do leitor da pagina cinco do caderno, se é que esse leitor existia. Dessa vez, depois de um kit com caneta e uma agenda da Caixa Econômica, pouco útil quando já se está no mês de maio, vinha um envelope timbrado da Companhia das Letras com “Mãos de cavalo”, de Daniel Galera. Antes de ler a orelha, Fernando olhou para o relógio e para a última página do livro. Cento e oitenta e oito paginas, seis horas. Quatro pra ler, duas pra resenhar. A rapidez do cálculo surpreenderia até Mariana, que naquele momento devia estar tentando entender algum dos índices de preços ao consumidor.
Foram realmente quatro horas ininterruptas de leitura. Enquanto lia, Fernando nunca anotava nada. Compensava toda dislexia e falta de organização com a capacidade que tinha de abrir blocos de notas dentro do cérebro. Fazia associações, anotava idéias e frases, e estruturava a resenha sem usar a caneta ou o computador, e não perdia a capacidade de fruir a leitura. Quando terminava de ler, já trazia ao menos uma conclusão: gostara do livro. Ele jamais leu um livro do qual não tenha gostado. Julga simplesmente impossível. Lê às vezes mais de dois terços de alguns, mas nunca termina. Ele sabe que isso é incoerente com sua profissão, mas não sabe agir de outro jeito. Por outro lado, acaba lendo bem mais do que se lesse os livros inteiros. Tem semanas em que lê dezenas de livros pela metade, até achar um que o leve até o fim. Se somasse as páginas dos inacabados, sem dúvida elas se sobressairiam às dos livros concluiu durante a vida toda.
Agora estava “Mãos de cavalo”, esperando para ser resenhando. Tarefa ingrata, e até certo ponto, odiada por Fernando. Detesta teorizar sobre livros. Gosta de dividir com os outros sensações que uma passagem traz, e principalmente, gosta de recomendar leituras. Está sempre querendo que os amigos leiam os livros que lê. “Mãos de cavalo”, leitura recomendada. Da resenha feita as onze horas daquela quinta-feira quase nada foi publicado no sábado. O editor voltou mais cedo, pegou meia dúzia de críticas de jornalistas conhecidos, leu o release da editora, a orelha do livro, e lá estavam duas colunas sobre o escritor que amadureceu, e que saído da internet, é agora uma das promessas da literatura nacional.O leitor da página cinco, provavelmente não vai ler o livro, mas algum amigo de Fernando deve fazê-lo.
As idéias da resenha, ignoradas por Lício, o editor do caderno, Fernando não guardou em lugar algum. Antes de dormir, lembrou apenas que tinha feito alguma associação com o Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo. Nada de novo, mas nada que pegasse o atalho da obviedade. Não tocou na coincidência dos dois escritores serem gaúchos, por exemplo. Da leitura da cena do parto em Mãos de Cavalo nasceu a idéia de imaginar um possível parto para o livro. O Tempo e o Vento, que era pai de tanta gente, e tinha até um bastardo na Colômbia, não ia se negar a reconhecer mais essa paternidade. “Mãos de Cavalo” nascia então no momento em que Toríbio Cambará morria no colo de Floriano, dentro de um táxi, depois de ser esfaqueado em uma briga.
Essas associações livres são o esporte preferido de Fernando, e são, principalmente, seu remédio para dormir. Ele às chama de associação livres justamente porque não tem a menor pretensão de descobrir o elo perdido que liga os escritores.Sabe muito bem que quem conecta um livro ao outro é ele mesmo, e se sente feliz ao conectar um clássico lido aos quatorze anos com um livro lido há poucos dias. No meio das associações sempre surgem frases que ele julga ótimas para as resenhas a serem escritas no dia seguinte, mas quando lembra de escrevê-las, Lício lembra de arrancá-las, quase sempre com argumentos simplistas e antipoéticos: "quem pari é a mãe, e não o pai", disse ao ler o trecho sobre o parto de "Mãos de Cavalo". A vida segue e Fernando continua como um pastor de igreja, pregando o evangelho de sua estante. Naquela noite dormiu com um sorriso ao lembrar de Claudia. Tinha dito à ela que a mania de recomendar livros vinha do fato de querer que os outros gostem daquilo que ele gosta, e que o faz feliz. Ela respondeu que a leitura não era necessária. Bastava gostar dele para gostar de todos aqueles livros.

Dúvida de português.

Será que a palavra "arcaico" tem alguma relação com a arca de Noé?