Placas
1
Cantava, e cantava alto, não importando se os passageiros do ônibus achassem aquilo estranho. Colocava os fones no ouvido, aumentava ao máximo o volume do MP3 player, e cantava. A altura do som, dizia ele, era porque apesar da pouca idade, já estava meio surdo. Gostava de contar que a causa fora a banda de adolescência, na qual o guitarrista tocava extremamente alto. Não se sabia se era verdade. Tivera sim, banda, mas nunca havia feito uma audiometria.
A banda?
O guitarrista, esse que me surdou, virou polícia.
Cantava, e se imaginava cantando. Sempre nos melhores palcos, mas palcos sempre reais. Bares na Lapa, casa de shows da Zona Sul. Se era para imaginar, que se imaginasse direito. As meninas da platéia, sempre reais também. Hora uma do estágio, hora outra da faculdade, às vezes até, uma da época do colégio. Nesses devaneios, era rei. Não um rei imaginário, mas de uma realeza real: ele, com a guitarra não, tocando e cantando as musicas que o modo aleatório do Ipod escolhesse.
Cartola, Led Zeppelim;Beatles, Bob Dylan e Belchior; Nando Reis, Roberto Carlos, Paulinho da Viola, Mombojó. Só quando tocava Elís, ou Gal - na fase Vapor Barato, que fique claro - ele largava os vocais.Virava mero guitarrista. A imaginação tinha que ser real, e não dava para se imaginar mulher.
A música é realmente a mais bela das esquizofrenias.
2
Dois mulatos. Ficou ressabiado, mas não dava mais tempo de esconder o Ipod.
Soco na cara, nariz ardendo, olho cheio de lágrima. Raiva. O moleque, olhos cheios de sangue. Ele disse que não. Quis negociar. Soco na cara, arrancão. Fone arrebentado. Raiva.
3
Voltou a ler. Sempre leu, desde criança. De leitura, era menos esquizofrênico. Nunca se imaginou um personagem.Agora, as leituras sacolejantes, no caminho da faculdade, estavam de volta.Lera há uns dois anos " Abusado", de Caco Barcelos.
O repórter da Globo?
O repórter da Globo.
Marcinho VP, o "Abusado", foi assassinado. O traficante, que tinha começado a ler por incentivo de amigos intelectuais, foi colocado dentro de uma lixeira. Sobre ele, os livros, e sobre os livros, uma placa:
bandido não lê, seu babaca.
4
No ônibus, lendo o Evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago. O livro era novo, mas a edição, uma daquelas de banca de jornal, se fingia de antiga. Azul escuro, letras douradas.Ainda no começo, se fala de placa sobre um homem morto. Jesus de nazaré, Rei dos Judeus.
Dois mulatos.
Deu de ombros. Não de verdade, mas em imaginação.
bandido não lê, seu babaca.
Os dois sentaram atrás dele.
Só não mete o playboy, que ele tá lendo a bíblia.