Monday, October 30, 2006

Alaranjados e Vermelhos

Ela nem reparou, mas os dois peixes do aquário têm a cor de seu cabelo. Passa na sala todos os dias, senta no sofá, coloca as meias, o tênis, e sai. Muito mais fácil colocar a calça depois das meias, o algodão desliza melhor pelo jeans do que os pés nus, ainda um pouco molhados do banho. Mas a janela da sala não tem cortinas, e ela sempre esquece de levar as meias para o banheiro. Por isso, já vestida, anda até a sala com a toalha nas mãos, senta no sofá, pega o par de meias que estava dentro do tênis, coloca as meias, o tênis, e sai. Às vezes olha para o aquário na estante, em cima da televisão, mas não reparou ainda que os peixes têm a cor de seu cabelo. São dois, entre alaranjados e vermelhos. Acho que se chama japonês esse tipo de peixe.

Ela não reparou. Desce despencando os três andares do prédio sem elevador, e na rua começa a aflição. Nada no Rio é tranqüilo. Mesmos nas atividades mais corriqueiras e prazerosas, como ir à praia, ou à padaria, sempre fica a sensação de que é preciso estar atento. A tensão não vem do que se lê nos jornais, ela mal tem tempo de ler os jornais, mas da própria cidade, não o Rio, mas a cidade que mora dentro dela, a cidade onde nasceu e viveu até os dezoito anos.

No começo, ruborizava por tudo. O pior foi quando pediu uma pipoca sem casca.Teve que aturar o pipoqueiro rindo, um riso debochado, que lhe doeu. Ficou entre alaranjada e vermelha. Da cor dos peixes e do cabelo, mas na época não tinha nem peixes nem cabelos pintados.
Hoje, os cabelos entre alaranjados e vermelhos deslizam com mais facilidade nas ruas da cidade, mas, ainda assim, sem o conforto das meias vestidas antes de se colocar a calça jeans. Talvez só abandone a cidade dentro dela para viver nessa de agora, quando encontrar na esquina um pipoqueiro que venda pipocas sem casca, que ela demorou dezoito anos para descobrir que só existem em Petrópolis. Ou quando alguém lhe mostrar que os dois peixes em cima da estante têm a cor de seus cabelos.

6 Comments:

Anonymous Anonymous said...

muito bom texto, meu amigo!

10:07 PM  
Blogger Carla Marques said...

Pedro é um autor. Segundo ele, isso é um elogio. Portanto, tenho mais nada a dizer. Beijo

5:57 PM  
Anonymous Anonymous said...

Bom o texto, mas me deixou na espera, pensava que a célula dramática seria o momento em que começa a se falar da cidade dentro dela. Mas foi a tal da pipoca sem casca.

4:08 AM  
Anonymous Anonymous said...

é permitido comentar comentários?? se for, eu tenho um: que comentário chato, esse aqui de cima! hehehe. desculpe.

10:42 AM  
Anonymous Anonymous said...

Superficialidade é chato, mas quem se satisfaz com ela...rs
*acho que o conto continuaria...

4:03 AM  
Anonymous Anonymous said...

superficialidade é lindo!

11:15 AM  

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